reflexoes de cafe num dia de chuva

Hoje, enquanto lia mais uma pagina de Midnight's Children, ocorreu-me um pensamento que nunca me tinha passado pela cabeca, que foi, pela primeira vez, admitir que o que lemos nos livros de ficcao é realidade e que é por isso mesmo que ler ficcao me da tanto prazer.

É óbvio que existe uma realidade fisica onde estamos inseridos enquanto materia (humana), mas ainda é mais obvio que essa mesma matéria so faz sentido num contexto muito maior, que é o dos sentimentos.

A nossa vida, e a percepcao que fazemos dela, é muito mais rica no espaco dos nossos sentimentos do que no limitado espaco fisico onde nos movimentamos. Alias, nas vidas sedentarias que a maioria de nós leva, a componente essencial da nossa vida desenrola-se no espaco do pensamento, da imaginacao e das relacoes. Sentir, planear, entusiasmar-se, irritar-se, achar piada a alguma coisa - tudo isto sao sentimentos e percepcoes externas ao nosso corpo. Numa vida de estudante numa faculdade ou de trabalhador num escritorio, 'a excepcao de fins-de-semana passados aqui e ali, somos muito mais o que sentimos e pensamos do que o que somos materialmente, na nossa movimentacao rotineira no espaco. Mesmo o acto sexual, por exemplo, no qual a maioria de nós ve uma componente importante da existencia, engloba (quando nao é quase exclusivamente) uma componente cerebral e emocional importante.

A imaginacao joga aqui um papel importante. Nos planos que cada um de nos faz do futuro - e os planos de futuro sao tudo o que nós fazemos com o cerebro, quando nao estamos a recordar o passado ou a dormir - a nossa imaginacao tem liberdade absoluta para delinear e construir aquilo que quiser.

O que chamamos de razao, de facto, obriga-nos a limitar a nossa imaginacao 'aquilo que julgamos fisicamente possivel, mas essa nocao do limite é uma barreira que nós proprios criamos com base naquilo que nos parece o razoavel dentro do nosso quadro de conhecimento - a verdade é que nós somos perfeitamente capazes, se quisermos, de imaginar livremente e sem barreiras do que é possivel e do que nao é. Ao fazermos isso, estamos a entrar num espaco ilimitado de possibilidades, em que cada um de nós cria o seu proprio espaco e a sua propria realidade, como cada um de nós a ve.

Criar estas realidades dentro de nós nao é inverosimil nem sonhador, e a prova disso é que muito do que é fisicamente possivel hoje nao o era ha anos - seculos, milenios - atras. Ou seja, se alguem ha cerca de 1000 anos visse na sua cabeca algo parecido com uma aviao, estaria, de acordo com o quadro de conhecimento da epoca, a criar uma realidade inverosimil e, como tal, poderia ser argumentado que essa pessoa nao estava a projectar uma imagem real. Contudo, como sabemos hoje, estava.

Portanto, concluo, nada do que a nossa imaginacao nos ditar é necessariamente impossivel ou inverosimil, porque existe a possibilidade real (como demonstra o exemplo do aviao) de o que estamos a pensar/imaginar poder acontecer.

Se isto é verdade, entao nao ha razao para os personagens de um livro de ficcao nao o serem tambem. Isto é: por muito inverosimil que nos pareca, um caracter de ficcao pode ser tao real como qualquer outro individuo de quem nos falem.

Quando alguem nos conta a historia de um explorador que subiu o Evereste ha 50 anos, por exemplo, nós sabemos que nunca o vamos conhecer. Para nos, a sua realidade fisica é irrelevante. O que nos interessa na sua historia é o desenrolar da sua escalada, o que ele sentiu, o que aprendeu, o que descobriu e o impacto que isso tem em nos, nos nossos sentimentos, no nosso prazer, na nossa aprendizagem e nos nossos planos.

Um caracter de ficcao provoca-nos precisamente as mesmas sensacoes, se for encarado com esse mesmo desprendimento fisico com que encaramos um personagem de um relato real que nao vamos conhecer fisicamente. 

A diferenca num caracter de ficcao, é que todo o contexto que o rodeia é tambem ficcionado, de modo que ao ler um livro estamos a projectar na nossa mente e no que somos hoje toda uma nova realidade, recheada de novas possibilidades, caracteres, espacos, mundos e licoes. Esse conjunto de novidades é real no impacto que causa em nos e na forma como nos molda. E a verdade é que, fisicamente, nao é menos real do que a historia de Gengis Khan ou de Filipe da Macedonia, porque temos tanta possibilidade de comprovar fisicamente a sua real existencia como a do Coronel Buendia ou de Adam Trask.

Os livros de ficcao criam possibilidades de pessoas e locais que, se sao realidade na imaginacao do autor, facilmente se tornam realidade nas nossas cabecas. E, partir do momento em que sao realidade nas nossas cabecas, tornam-se imediatamente possibilidades reais com possibilidade de impacto real em nos.

Alias, Saleem Sinai, em Midnight's Children, é com certeza muito mais real para mim do que um submarino seria para o Rei D. Afonso Henriques.

Ou seja, dos livros de ficcao podemos extrair inumeras novas possibilidades e exponenciar a nossa realidade muito para la do que nos parece possivel quando abrimos o Google Earth e olhamos o mapa do Mundo em busca de possibilidades.

Acho que é por isso que ler me da tanto prazer: ao ler ficcao, desbravo uma inifinidade de possbilidades - de pessoas, lugares, filosofias, sensacoes - tao ou mais reais do que as que construo e planeio na minha imaginacao durante o dia.

Nao quero com isto necessariamente implicar que, um dia, sera possivel transformar universos literarios em materia (e ainda assim, porque nao?), mas pelo menos penso que é razoavel admitir que a criacao imaginaria que se desenrola na nossa cabeca durante a leitura de um livro de ficcao é tao importante como a observacao racional da realidade fisica, porque ambas causam em nos precisamente o mesmo impacto: despertam os nossos sentimentos e fazem-nos (a nós) viver.

A literatura e os seus personagens só nao sao reais em matéria. Se admitirmos, como eu julgo razoavel, que a matéria é mais um impedimento do que uma condicao necessaria para o desenrolar de uma realidade genuina, cada livro de ficcao é um mapa aberto, e a cada pagina mais caminhos se abrem detro da nossa vida, e por cada novo caminho surgem inumeros sentimentos, e em cada sentimento inumeras possibilidades, e dessas possibilidades extraimos vida.

A prova de que isto tudo é verdade é que, se cada um dos leitores deste texto admitir como possivel o facto de eu, afinal, nao ter estado a ler Midnight's Children, e vir este texto como, por exemplo, "O discurso de Emanuel Piretio Saminio, presidente da galaxia de ciberoceano, no terceiro continente a contar da via lactea", nada do que acabou de ler tem menos impacto por ser o discurso de uma personagem de ficcao e nao o texto real de um blogger que a maioria dos leitores nao conhece e nunca conhecerá. 

El-Gee ou Emanuel Saminio, em Sydney ou em ciberoceano, real ou de ficcao: a questao nao está aí, a questao está no que El-Gee (ou Emanuel Saminio) diz e pensa, e no impacto que isso tem no leitor e na construcao do seu proprio caminho.

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