uma pena imersa num boiao cheio de tinta

Filipe Canas é um tipo curioso, ao ponto de esgotar a definicao: é curioso enquanto sujeito, ávido de conhecimento e desenvolvimento intelectual, e curioso enquanto objecto, isto é, digno de curiosidade alheia ele próprio.


Como estudioso que é, Filipe Canas nao é o tipo de pessoa que recusa um pedaco de conhecimento, mas, no caso da Literatura, parece-me que descobriu uma adicao especialmente importante ao campo que elegeu como prioridade da sua busca de conhecimento: as relacoes internacionais - e, numa versao expandida (quase por definicao) do tema, as relacoes humanas. 

É evidente que, como estudioso das relacoes humanas, Filipe Canas passou do estudo das relacoes internacionais puras e duras para livros de outras ciencias sociais, tendo até desenvolvido um espantoso (mas nao surpreendente) interesse pela economia.

Mais tarde, enveredou pela filosofia, e parece agora ter encontrado na Literatura - e na forma como a Literatura retrata, nas suas palavras, "aspectos únicos do Zeitgeist de certas épocas" e no papel que tem "na história das ideias e na descricao dos ambientes sociais" de certa época, ao ponto de se tornar "um meio priveligiado de acesso ao mundo" - a sua nova ferramenta de análise.

Eu tenho uma certa reserva em relacao a esta abordagem utilitarista à Literatura.

Como é lógico, nao discordo de Filipe Canas quando diz que a Literatura é um excelente retrato de determinada realidade, mas parece-me que isso é apenas uma das grandes virtudes da Literatura, entre tantas outras que, para quem se foca maioritariamente numa só, acabam por ser desperdicadas.

A Literatura enquanto fonte de prazer, por exemplo, nao só o prazer de uma boa história como o prazer de uma boa personagem, uma boa frase, um bom pensamento, uma boa associacao de palavras. A Literatura como fonte de escape, como fuga ao quotidiano para quem nela e com ela embarca em realidades paralelas. A Literatura como instigador de um processo fluído de interaccao com outra pessoa, com quem a escreve, naquela estranha mas poderosa simbiose leitor-autor, separada, nos momentos mais sublimes, apenas por um lapso temporal entre quem escreve e quem lê. A Literatura enquanto companhia. A Literatura enquanto arte per se. A Literatura enquanto ela própria. A Literatura enquanto objecto de plácida contemplacao. A Literatura enquanto Beleza. E por aí fora.

Filipe Canas está neste momento a usar a Literatura como utensílio de luxo para chegar a um objectivo, a meu ver desprezando (por certo consciente disso) o que eu considero a principal característica de um bom livro, que é a sua identidade própria independente de qualquer tipo de contexto. O manuseamento utilitarista de uma grande obra de ficcao acaba por despoja-la da sua validade enquanto realidade, realidade essa que por vezes chega a ser quase organica, mais orgânica ainda do que o papel onde está impressa.

É certo que a motivacao que cada pessoa tem para ler um livro pode assumir tantas formas como o tipo de livros que existem. O universo literário é inifito, um "biblioteca de Babel", como lhe chamaria Borges, e, como tal - se tomarmos essa definicao como válida - tao inifinito como o conjunto de todas as verdades. Nesse sentido, toda esta discussao é inconsequente, porque na biblioteca de Babel todos os livros sao possiveis, e numa tal biblioteca nao é necessário debater a forma correcta de utilizar (ler) um livro, porque para cada forma correcta de ler (para cada tipo de leitor) há uma inifinidade de obras à disposicao que servem precisamente o propósito de cada leitor.

No entanto, e sem querer alongar-me demasiado neste debate de como se deve ler a boa Literatura, nem muito menos tentar definir o que é boa Literatura - já que isso sao duas questoes para as quais nao só nao tenho resposta como nao tenho conta de quantos dias já perdi à procura dela - provoca-me um certo amargo na consciência observar a evolucao de Filipe Canas enquanto leitor de Literatura.

Se nao estou em erro (uma pessoa nao sabe tudo sobre os seus amigos - alias, sabe muito pouco) Filipe Canas está pela primeira vez a levar Literatura a sério, e a mim, que nao sou, nem de perto (aliás, nem quero ser) um especialista no tema, parece-me que está a iniciar o seu caminho pelo túnel mais estreito.

Mas isto é o que eu penso e, como eu e Filipe Canas nao somos a mesma pessoa, o que eu penso tem pouca importancia, já que na biblioteca de Babel há lugar para todos.
 

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