Na varanda de Don Feliciano



Fumo um cigarro de consumo lento num pequeno hotel em Neily. A varanda abre-se para o movimento ja escuro da pequena vila. Ninguem, nos outros quartos; sou o unico hospede deste hotel adormecido, nesta terra de ninguem a caminho de lugar nenhum. Sou, tambem, o unico hospede nos ultimos 20 dias e o unico portugues nos registos iniciados em 1977 que folheio junto a Don Feliciano Musuco, o velho dono de grossas lentes e maos sapudas.

No entanto, assegura-me ele, esteve ca um outro portugues, ha uns cinco anos. "Se llamaba Mota, creo. De apellido Mota."

Mota; eu.

Don Feliciano.

Fumo o cigarro e percorro, observando o lento consumir da cinza fosforescente, os ultimos tres meses. Tambem eles se consumiram inevitavelmente, como o cigarro que seguro com dois dedos adormecidos. Tres meses, mais de tres meses pela estrada fora. Mais de tres meses de outros hoteis, outros cigarros, outros velhos de lentes grossas, outras solidoes. Tantas outras solidoes, tantas vidas consumidas nos campos, montanhas e cidades destes alegres paises destroçados pela historia. Tantas vidas que passaram pelos meus olhos; muitas pelas minhas voz e ouvidos. Algumas pelas minhas maos e o meu corpo.

Quantas, pelo meu coracao?

Todas, talvez, todas, e o seu conjunto forma o mosaico de cores e saudade que sopra levemente sobre o meu cigarro. Inalo de novo e foco a cor viva que quase toca o filtro que seguro com cuidado. Sinto o calor de mais um cigarro que chega ao fim roçar a pele dos meus dedos. Eu, que nem sou fumador.

Apago-o, finalmente, e com ele mais um dia, quase no fim de uma viagem, quase no principio de outra, muito maior.

Volto as costas a rua e dirijo-me ao meu pequeno quarto. É o fim de mais um dia, sorrio, ainda bem que faltam muitos por viver.

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