Clubbin' in Beijing

Big Mac

Estou em Pequim durante um dia, à espera do meu voo para Lisboa. Um dia em Pequim. Chego às oito da manhã, o dia cai as seis da tarde. 15 milhões de pessoas, 10 horas. Um milhão e meio de pessoas por hora.

Realmente, estou mesmo só de passagem.

Depois de cidades relativamente acolhedoras como Kathmandu e Lhasa, sou apanhado desprevenido pela dimensão desumana (ironicamente, cheia de humanos) de Pequim. Como primeiro acto da minha jornada, entro num MacDonald’s. Lembro-me do meu amigo Lorena escrever no seu brilhante blog que, ao terminar o seu périplo de 3 meses pela Ásia e devorar um BigMac, sentir que essa sim era uma refeição verdadeiramente gourmet, depois das iguarias exóticas do Oriente. Na altura, compreendi o que escrevia mas não penetrei ao certo no significado da frase. Pareceu-me um divertido malabarismo literário. Não era.

Aquele Big Mac sabe-me a carne fresca, sabe-me a casa, sabe-me a metrópole, a avenidas com trânsito ordenado, a arranha-céus, a roupas caras, a multinacionais luzindo em cartazes de neon, a vidas agitadas, a mochilas de escola, a sobretudos compridos, a centro comercial, a passos apressados, a livros em inglês, a taxímetros que funcionam, a horários de autocarro, a calças de ganga, a sábado de manhã.

O MacDonald’s está cheio. As lojas, os transportes e as largas avenidas de oito faixas também. É bem cedo de manhã mas os 15 milhões de pessoas não despertam para um dia de descanso: despertam para o consumo, para o movimento, para uma Vida que se sente a respirar, nesta enorme metrópole. Se não fossem os sinais em chinês e os olhos em bico, poderia estar em qualquer grande metrópole desenvolvida do Mundo. É certo que cada cidade tem as suas características únicas e essenciais, a sua impressão digital que a distingue das outras. Porém, o primeiro olhar de alguém que chega da vastidão tibetana não procura logo o Único: começa por procurar o familiar. Os passeios limpos, o cheiro fresco a manhã metropolitana, os sinais de trânsito, os peões na passadeira, as montras familiares, os prédios enormes e os vidros que reflectem carros reluzentes que passam lá em baixo na estrada. Pequim é uma Cidade do Mundo. Dez minutos bastam para compreendê-lo.

Idealogias

Centro a minha exploração no que, para mim, é o mais vivo de qualquer cidade: a sua praça principal. Recordo o nome Tiananmen da memorável imagem do jovem estudante que, em protesto contra as restrições das liberdades individuais da China de 1989 (a data aqui é irrelevante, pois o protesto é tão actual hoje como há há 17 anos), se colocou diante de um tanque em movimento no meio da praça. Vivi durante muitos anos fascinado por esse herói anónimo que se lança voluntariamente para uma batalha desigual frente a um tanque de 10 toneladas, até ler, algures, um pequeno parágrafo onde alguém louvava o condutor do tanque.

O Mundo vê na imagem o Homen Livre contra a Máquina Opressora, mas esquece-se do militar que conduzia essa máquina que, apesar das ordens de avançar, não resiste à sua Humanidade e trava abruptamente quando o seu jovem conterrâneo se coloca em rota de colisão com a máquina assassina que conduz. Também ele, o segundo herói dessa imagem, terá desaparecido, provavelmente, nos corredores do terror chinês.

Estes e outros pensamentos me percorrem enquanto me deixo embasbacar pela enormidade da praça. É um espaço alarve, frio, cinzento. Terrível. Edifícios austeros decoram as suas extremidades e espalham-se inclusivamente pelo meio da praça, guardados por uma infinidade de guardas primorosamente fardados, nas suas expressões sérias. Que tristes! Tristes vidas, as dos guardas e soldados, empedradas marionetas de um regime obsoleto.

Diz Maruja Torres no seu magistral relato de um périplo pela América Latina, Amor América, que “No hay nada más absurdo que una frontera, ni nadie mas idiota que el tipo uniformado que se siente importante porque cree que divide el mundo al exigir un papel.”.

Não há nada mais absurdo do que uma praça principal com centenas de soldados armados, nem ninguém mais idiota do que o tipo uniformizado que se sente importante porque crê que é respeitável ao exigir ordem à força da arma que traz ao ombro.

Eu, cidadão orgulhosamente livre de um país liberal, olho com escárnio para aquelas figuras tristes, dizendo-lhes, na linguagem universal da mente: “a mim não me metes medo nem impões respeito; a mim fazes-me pena e provocas-me gargalhadas de indiferença”.

Que livre me sinto ali no meio daquela opressão socialista, rodeado pelas bandeiras chinesas reverencialmente guardadas, mirado constantemente pelos olhos aparentemente benevolentes de Mao Zedong, um dos maiores assassinos da história, cujo enorme retrato está pendurado numa das extremidades da praça. Mesmo por entre todo o burburinho económico das suas enormes avenidas, roupas caras, pessoas bem sorridentes e empresas de todo o Mundo que ali se estabelecem, a China é orgulhosamente socialista, opressora, castradora. A Praça da Tiananmen, palco vivo e efeverscente de amores e desamores, primeiros passos e trambolhões, visitas turísticas e piqueniques, bicicletas e papagaios de papel, é, ainda hoje perigosamente ideológica, esmagadora e anónima. Triste. Arcaica.

Ridícula.

A Cidade Proibida

Depois da Procura do passado em Lhasa, em Pequim desejo voltar à busca do presente. Porém, ecoam-me na memória os passos d’”O Último Imperador” nos pátios desertos da Cidade Proibida e, blasfemando contra Bertolucci pelo realismo com que filma esse espaço monumental, decido que não posso sair de Pequim sem ver o Palácio das maiores e mais poderosas dinastias chinesas de séculos idos, mesmo que para isso tenha de abdicar da continuação das minhas deambulações pela enorme e real metrópole que é a Pequim do século XXI.

Mesmo tendo visto o filme, não estava preparado para algo tão grande em espaço e tão sublime em beleza. A Cidade Proibida é uma sucessão de pátios muralhados, gigantescos, rodeados de templos e palácios. Após cada pátio, outro, como um sistema de comportas de água. Deixo-me assim derivar naquele sentido único, imaginando que sou uma rolha de cortiça no canal do Panamá: flutuo no primeiro pátio, vou até às portas do segundo, passo para lá, flutuo no segundo..e deixo-me ir, de pátio em pátio, de templo em templo, de memória em memória, de passo em passo, até ser só mais um pequeno chinesinho rodeado de eunucos. Até ser só um último imperador.
Quando saio, ainda imaginando ouvir o eco dos meus passos contra paredes frias da muralha, sou apenas o último português e os eunucos são turistas, tão numerosos quanto o eram os serventes dos imperadores Ming.

Clubbin’

Como insisto em andar a pé para todo o lado, regresso ao hostel onde tinha deixado a mochila de manhã, exausto. Tenho atrás de mim muitos quilómetros de caminhada num só dia. Caio no sofá do hall mas lembro-me de arrastar uma garrafa de cerveja antes da queda.

São conhecidas as propriedades sociológicas e químicas de uma garrafa de alcool sobre uma mesa. Em menos de nada, eu e os ocupantes dos restantes sofás somos um só e, passada a quarta cerveja partilhada, duas francesas não têm dificuldade nenhuma em arrastar-me a mim e a um argentino para uma noitada entre alunos de arquitectura franceses a estagiar em Pequim.

Descubro um bar urbano e universal, cheio de gente expatriada de todo Mundo. Descubro cocktails inebriantes, drum ‘n bass inovador, luzes fluorescentes. Descubro a dança, o calor das horas que passam, os rr’s afrancesados da Amandine.

Passam as horas e as bebidas, os sons e os calores, passam as luzes à minha volta, dançando comigo e eu com o espaço, movendo-me descomprometido ao som do momento, entre cá e lá, entre encarnado-vivo e amarelo fluorescente.

Uma delas olha-me com ar divertido durante longos segundos e depois segreda-me: “When, in two days, they at work ask you how was your weekend, you can answer” e faz um pequeno silêncio, arregalando os olhos castanhos-amêndoa, “”I was dancin’ in Beijing!””

Sorrio-lhe deleitado com a ideia, tão simples mas tão real. A amiga, que ouvira a conversa pelo canto do ouvido, puxa-me e diz: “Or even better: I was clubbin’ in Beijing!””

Olho-as meio rodopiante, entre Pequim e Paris, num enorme sorriso, enquando o remoinho dos nossos corpos inebriados varre a pista em espiral. Perdemos a noção do tempo e da linguagem, e deixamos as horas passar, por entre os nossos corpos inquietos, as luzes densas, o ritmo do baixo e o fresco calor dos cocktails..

Quando, 24 horas depois, momentos antes de aterrar em Munique, - após de ter sobrevoado, num dia sem nuvens e numa perseguição constante do pôr-do-sol, a muralha da China, o deserto de Gobi, toda a Sibéria e as repúblicas da Ásia Central - fecho os olhos, reclino a cadeira e recordo as última noite da minha viagem, os derradeiros momentos orientais do meu périplo pela Ásia montanhosa e o formigueiro provocador do meu corpo inquieto, uma frase sobrepõe-se a qualquer pensamento; uma frase sobrepõe-se a qualquer antevisão do regresso a casa, qualquer expectativa, qualquer saudade, qualquer ansiedade, qualquer medo, qualquer obstáculo; qualquer adversidade.

Uma frase preenche-me a mente, penetra-me a alma, flui-me livre por todos os músculos cansados depois de três semanas na estrada, fortalece-me para o regresso a casa, para mais uma partida, para outro regresso e para quantas chegadas e partidas a minha vida me reservar:

I was clubbin’ in Beijing.

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