Chovem rios sobre Lisboa quando surges através dos vidros embaciados do meu carro. Os faróis iluminam às farripas o teu cabelo de tinta barata que se cola, gelado, a uma lividez encharcada. Abrando quando me acenas de mão na anca. Da tua perna escorregam fios de água gelada que se afogam nos saltos pretos dos sapatos que trazes e te comem os pés. Reparo na cor que te escorre pela cara até à boca. São lágrimas desbotadas de uma máscara que vestes para mim.
Encosto o carro junto a ti. Avanças, decidida. Quantos anos terás? 18? 19?
Abro o vidro.
- Se eu te der cinquenta euros vais para casa?
- Para minha ou para tua?
Já não és uma menina. Nem eu.
- Para tua, sem mim.
- Tás a querer gozar com quem, caralho?
- Não tou a gozar. Entra.
- Cinquenta euros não chegam para a sopa de amanhã pá.
- Ai não? Quanto custas?
- Setenta.
- Entra.
Abro-te a porta. Sentas o rabo molhado no banco ao meu lado. Quase te vejo a anca. És bonita. Uma manta de retalhos bem cosidos.
- Gostava que não trabalhasses hoje.
- Trabalhas tu por mim?
- Não, mas pago-te e levo-te a casa.
- E fodes-me em minha casa?
- Não! Não! Não te fodo! Hoje não fodes! Vais para casa, descansar.
Olhas-me aterrada. Achas-me um tarado esquizofrénico.
- Vai gozar com outra pá.
- Como é que te chamas?
- Rute
- Rute, eu não costumo..pagar por isto, tás a perceber? Gostava só que fosses para casa dormir e tomar um duche quente. Está um gelo. Está escuro. Chove.
- E pagas-me para isso??
- Pago. Se prometeres que vais para casa e ficas lá, pago.
- E és o quê, um anjo da guarda?
- Acreditas em anjos?
- Não.
- Então não perguntes.
Atrás, luzes fortes mandam-me avançar. Encosto mais à frente.
- Então?
- Pá..eu nem acredito nisto. Porquê eu?
- Não sei.
- Pá ya. Quer dizer. Nem sei que te diga. Nunca me aconteceu isto.
- Pois.
- Mas não quero que me leves a casa. Deixa-me num táxi.
- Posso pagar-to?
- Já sabes que não vou recusar.
- Há aqui alguma paragem?
- Há, a uns dois minutos.
- Vai-me dizendo o caminho.
Arranco devagarinho, a chuva cai assutadora sobre o vapor do vidro.
- Que vais fazer, quando chegares a casa?
- Eu?
- Sim.
- Pá..olha nem sei. Aquecer-me. Ver a minha filha. Vê-la a dormir.
- Tens uma filha?
- Tenho duas. Uma vive com o pai.
- E esta, contigo?
- Sim. Tem dez meses Fica c’ávó durante a noite..
- E durante o dia?
- Também.
- Trabalhas de dia também?
- Ya, num café.
Escuto a chuva que cai. Uma melodia feminina penetra-me como o fumo quente de um chá num dia de Inverno.
- E tu, que vais fazer?
Olho-a, desprevenido. Eu? Que vou eu fazer? E porque queres tu saber?
- Eu..olha nem sei..tomar duche, dormir. Acabei de jogar futebol, como podes ver.
- Ya. Jogas à bola, é?
- Sim, com os meus amigos. Às segundas jogamos a estas horas.
- E trabalhas em quê?
Mais uma vez me deixas embaraçado. Tenho vergonha do que sou, do meu caminho, perante o que tu és. Por outro lado, gosto que saibas que os capitalistas de fato e gravata que te comem e te cospem são seres humanos como tu.
- Numa mega empresa, a aprender com os melhores a ser ainda melhor que eles.
- Parece-me melhor que o meu emprego!
Rimos com uma cumplicidade de velhos amigos que seguem caminhos diferentes e se encontram num amargo café a meio da vida.
- Olha curto esta música.
- É gira é..
- Direita.
- Ahn?
- Vira à direita.
- Ah, desculpa não tava a perceber.
- Mas que música é?
Ponho mais alto.
- Ah é uma da gaja dos Morcheeba. Costuma dar nos Morangos, acho eu.
- Putas.
Olho-a. “Mas a puta não és tu?”, pergunto-me.
- Mas.. a puta não és tu?
- Eu?
- Desculpa..
- Pá não te preocupes. Mas vou ter de te fazer uma pergunta de volta.
- Chuta.
- Esquerda e depois direita.
- Hum?
Ris-te.
- Foda-se és mesmo distraído! Vira à esquerda e depois à direita..
- Ah! Então? E a pergunta?
- Olha, achas que uma gaja que tem a segunda filha aos 20 anos, perdeu o pai para a morgue e a mãe para o alcool antes dos quinze, rebenta os cornos no absinto desde os doze, trabalha das sete às sete a ganhar 400 Euros por mês e está à meia-noite a chorar rímel e pecados no meio da rua à espera de um velho bêbado para lhe chupar a pila, é uma puta?
- Deixas-me sem resposta.
- E essas gajas vestidinhas de alface, a cuspir guita no vomitado de besanas de caipirinhas, com casas na praia e olhos azuis, com pais nos bancos e mães a arranjar as unhas nos cabeleireiros todas as terças e sextas, que fodem o melhor amigo do namorado e depois lhe vão chorar para o Mercedes à porta de uma mansão com piscina, são o quê?
- São putas, também, é?
- Foda-se. Essas é que são! Eu. Pá eu, achas que eu gosto de estar aqui?
Sou demasiado formatado para te compreender. Não me deste tempo suficiente para te julgar. Eras só uma puta, quando te abri a porta. Foste uma mulher da vida, quando entraste. Agora já não sei o que és. És um tiro no escuro que saíu na direcção errada.
- Desculpa Rute. Não sei como te responder. Gostava, mas não posso. Tenho imenso respeito por ti. Pelo teu esforço, pelo teu sacrifício, tás a ver?
- Tens pena de mim.
- Pá tenho.
- Não tenhas. Sou adulta. Sei lutar. Direita. É ali, vês?
- Sabes lutar, mas preferia que lutasses com outras armas..
- Como é que te chamas?
- Luís.
- Que idade tens?
- Vinte e três.
- Vinte e três..mais dois que eu..
- Mais dois que tu..
- E, desculpa que te diga, não sabes nada da vida.
Não tenho resposta. Acredito em ti. Conseguiste tocar-me. A chuva parou e desligo o motor. Saio para te abrir a porta.
- Ai mas que cavalheiro..
- Senti vontade de te ir abrir a porta.
- E meninos como tu abrem a porta a putas?
- Já abri portas a putas piores. Não lhes paguei foi setenta euros para irem para casa.
- Pagaste-lhes jantares para irem para tua, não foi? Todas têm um preço, nem todas assumem é isso.
- Não acredito no que dizes.
- Provavelmente nunca vais acreditar.
Rio-me.
- Provavelmente não. Olha, toma os setenta euros..
Aceita-os.
- És um gajo bacano Luís. Não sei que te diga pá..
- Dorme bem Rute.
- Não vou conseguir dormir, vou ficar a pensar em ti.
- Não fiques. Os anjos desaparecem como apareceram.
- Não acredito em anjos.
- Então faz de conta que eu nunca existi.
Sorrio-lhe e volto para o carro. Espera que entre e acena-me, antes de abrir a porta do táxi e sentar o rabo já seco no banco de lona gasta.
Esta noite vai ver a filha no primeiro adormecer, quem sabe se deitará a seu lado e derramará uma pequena lágrima de mãe ausente sobre a sua pequena almofada. Adormecerá exausta junto do fruto de um amor arrependido e acordará com a mãe que a verá, surpreendida, na cama da neta. Amanhã, talvez sorria. O mais provável é não o fazer. Vai gastar todos os sorrisos a que tem direito, hoje.
E eu.
Eu, sigo no meu carrinho de brincar para casa, ingénuo portador de uma boa acção que me desvenda a tristeza de uma vida demasiado bem parida.
The Love Show
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Unknown
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