Quando corro nas Docas

Estava um gelo hoje, quando cheguei às Docas. Bati com a porta do carro, apertei os sapatos e andei os vinte metros do costume até ao lugar onde todos os dias respiro fundo, lanço um último suspiro invejoso aos vultos que levam à boca chávenas cheias, do outro lado do vidro do café, e carrego no botão de cima do relógio antes de me fazer ao percurso.

Hoje, corri sem preconceitos contra a gravidade. Geralmente, os primeiros cinquenta passos dão-me a ideia do que vai ser a próxima meia hora. Perros, soltos, lentos, velozes, bem respirados, em esforço, de pulmões abertos, ou com uma certa azia. Tudo é possível, no momento em que me lanço a correr, e tudo será, durante meia hora, como nos primeiros trinta segundos.

Hoje, os meus movimentos fluíram sem gravidade. Estava um gelo, o chão escorregava sob a humidade de uma chuva miudinha acabada de cair e, para além de uma garça solitária, ninguém se atreveu a exercitar-se neste dia. Ou então, ninguém gosta de se exercitar às nove da noite. Eu, na verdade, também não. Olho em frente, para o Padrão dos Descobrimentos lá ao fundo, representante dos primeiros 25% do que me falta. Nove da noite, um vento gelado paralisa-me as mãos e o cabelo esvoaça com o vento e com a velocidade. Ouço a minha respiração bem treinada, quatro inspirações, quatro expirações,quatro inspirações, quatro expirações, quatro..meu Deus, como estou vivo hoje!, não há obstáculo que me trave, não há ninguém a ver-me, não há – já – as palavras do chefe que quase me impediam de estar ali naquele momento.

“Luís, quanto é que te falta daquilo que te pedi ontem?” – “Pá já fiz uma boa parte. Tá porreiro, mas preciso ainda de umas seis ou sete horas para acabar.” – “Preciso disto amanhã à hora do almoço pá..” - “Claro. Amanhã tou cá às sete então. Mas agora tenho mesmo de sair.” – “Tu é que sabes pá! Até amanhã”.

Até amanhã. São oito e meia, e preciso de respirar.

Quatro inspirações, quatro expirações.

Ouço os meus ténis desprezar a pedra molhada. O chão, hoje, não é nada para mim. Nada. Hoje, quem manda em mim sou eu. Não há músculo das minhas pernas que não se submeta ao sorriso que me oxigena a mente, enquanto passo pelas esplanadas interiores cheias de passageiros acomodados, ansiosos, também eles, pelo seu início de noite. Cada um o vive à sua maneira e eu, ultimamente, tenho-o vivido, meia hora por dia, saltitando velozmente pelo chão à beira-rio.

Está uma ventania, há ondas que se formam sobre a superfície escura do Tejo. Nada que me impeça de continuar o meu caminho. Um casal beija-se esperando pelo ferry para Cacilhas. Quando os vejo, já passei por eles. Não são nada para mim, ali só interesso eu, na minha marcha imparável, orgânica, satisfeita com ela própria. Fico feliz por eles, porém. Sinto algum carinho por todos os que estão ali fora ao frio, como eu. O meu dia de hoje e o seguinte passam-me pela cabeça. Sou de novo criança, vejo imagens da escola, vejo imagens do futuro, recordo viagens e amores. Parece que tudo faz mais sentido, às nove da noite junto ao rio, quando o único contacto com a terra é meio segundo de sola de borracha a cada momento.

Depois do clube de vela, onde algumas vozes solitárias arrumam as últimas quilhas, eis os Jerónimos. Os Jerónimos! Lembro-me, enquanto os meus passos inspiram toda a frescura da noite fria, amigas argentinas dizerem-me, em Roma, que tinham passeado pelos Jerónimos na sua vinda a Lisboa. Esses mesmos Jerónimos que tanto as impressionaram, são o palco fugidio da minha corrida. Sinto um arrepio de posse. Que luxo, esta corrida lado a lado com os Jerónimos. Tão mágicos para tanta gente, tão cénicos para mim. Companheiros do dia-a-dia que nem um olhar me merecem. Estão lá e eu estou aqui, ou estava, porque já percorro, quase sem tocar no chão, a rosa-dos-ventos de mármore cem metros mais à frente.

Vejo, no meu ritmo egocênctrico, os primeiros carros, estacionados na escura tira de alcatrão que alcanço em dois saltos.

Nove da noite em Lisboa.

Vidros embaciados denunciam amores proibídos. Passo indiferente, e não deixo de magicar. O que pensarão de mim aqueles casais enamorados? E serão enamorados? Imagino como me olham e comentam, “Bem! Olha-me este gajo, já viste. Às nove da noite aqui a correr. Ganda maluco.” Ou então “Porra este tipo deve gostar mesmo de correr. Deve-lhe fazer bem isto; tá melhor do que nós, aqui encafuados a fumar canhões. Foda-se, abre lá a janela. Olha para aquilo, é rápido o gajo. Já ali vai.”

E lá vou eu, tão oxigenado pela minha corrida que não me apercebo que ninguém me vê do lado de lá dos vidros. Os olhos não estão postos em mim. Os olhos miram-se mutuamente. Os amores escondidos são fugazes e intensos. Não há tempo a perder, no amor das nove da noite nas Docas.

“Já são nove, tenho de ir para casa. A minha mulher já me anda a ligar.” Este BMW está quase a arrancar. Mas há mais. Muito mais.

Há um Polo de três portas. “És tudo o que eu precisava”, diz ela, afagando-lhe suavemente os caracóis castanhos. “Nunca vi ninguém que me olhasse assim”, responde ele com ar ternurento, “e nunca pensei gostar tanto de estar assim com alguém”. E beija-a. E eu corro. E ele pensa: “És tão fácil. Achas que se gostasse de estar contigo te trazia a este recanto escuro e deixava os vidros fechados. Foda-se. Ainda por cima beijas mal.”

Estes e outros desabafos, e mais beijos, se trocam, e chegam-se bancos da frente para trás, enquanto eu sigo na minha passada indiferente, longe dos desamores das nove da noite.

Não. Eu, quando estou ali, estou comigo, entregue à minha obstinada decisão de acabar o dia a correr. Dou a volta no sítio do costume. Olho para o relógio. Doze minutos. Sorrio enquanto passo por um pescador que acaba de lançar a cana. Ontem fiz treze, neste marco. Bem me parecia que estava a correr bem. Deve ser do frio.

Inspiro com mais dificuldade no regresso. Quatro, quatro. Quatro, quatro. O Polo já se foi. Chega um jeep. Mais um beijo fugaz. E eu já passei. Ninguém me pára. Cheira-me a gasolina na bomba da Galp. Um, dois segundos. Bah! Que horror. Todos os dias esta náusea.

Mas que mal faz? Já avisto o casal do cacilheiro. Ainda lá estão e não param o beijo para me olhar. Há quanto tempo se estão a beijar? Pouco. Pouquissimo. Hoje, estou mesmo muito rápido.

A mão direita envolve congelada a chave do carro. Pelo menos assim não cai ao rio. Lá ao longe, as luzes sobre a ponte movem-se perpendiculares ao meu último esforço. Alguém a correr cruza-se comigo. E dois homens de bicicleta. Pelos vistos, ainda há cá gente a esta hora. Mas eu estou cego. Já não toco no chão.

Os restaurantes estão cheios e os vultos que se sentam às mesas são setas no canto do meu olho. Só vejo o fim. Faltam cem metros. Como vôo!! Tenho de aproveitar. Dou tudo o que tenho, sem esforço. Hoje, nada me custa. Cem metros. Quatro inspirações, quatro expirações. Cinquenta. Dez. Cinco. Com uma última passada regresso ao ponto de partida. Páro o cronómetro e respiro fundo o ar puro do descanso. O coração ainda esvoaça quando olho para o mostrador. Vinte e quatro, trinta e nove. Vinte e quatro, trinta e nove!! Menos um minuto que ontem!! Ahhh que bom!!

Hoje, foi uma grande corrida. Apetece-me ir dar uma volta a qualquer lado. Estou bem disposto. Hoje, como sempre, a corrida deixou-me alegre.

Estava frio, escuro e ventoso. Tinha roupa leve, poucas preocupações, pulmões abertos e a vida pela frente. Tinha espaço só para mim, pernas que me obedeciam e uma mente a divagar.

Hoje senti-me bem. Eu e o meu corpo, um só. Correr, mesmo em esforço, é sempre bom. Sempre duro, sempre íntimo, sempre em luta contra nós. Sempre bom. Mas hoje, hoje ainda foi melhor.

E amanhã tenho a certeza que vai ser igual.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

0 comments:

Post a Comment